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25 anos depois, a voz de Betinho soa mais atual do que nunca

· Na Mídia

G1

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O domingo foi tempo de mexer em lembranças, ativadas pela foto de Marcia Foletto publicada no jornal “O Globo” sobre o início da 25ª edição da campanha contra a fome realizada pela ONG Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida . Tirei da estante o livro “O Brasil de Betinho – A vez da Cidadania” realizado pelo Ibase em 2012. A publicação foi uma homenagem, para lembrar os quinze anos de morte do sociólogo contando sua história como grande ativador social.

Era um país muito diferente, o país em que Betinho conseguiu arregimentar cidadãos comuns, empresários e governo para conseguir progressos no nível socioambiental. O primeiro presidente eleito pelo voto direto (Fernando Collor) acabara de ser expulso do cargo que conseguira com falsas promessas, de caçar os marajás, lembram-se? E os brasileiros, recém-saídos de um regime ditatorial, começavam a aprender que a sociedade civil, quando quer, sabe muito bem conseguir mudanças. Naquele tempo, era preciso ainda explicar o significado de ONG, e assim definiu Betinho: “ONGs se definem pelo que não são. Não são governo, não são empresas, não são partidos, nem igrejas, nem sindicatos. São seres políticos diferentes, fazem política de forma diferente. São autônomos e independentes”. Os brasileiros aprenderam rápido, e a década de 90 teve um boom de criação de ONGs.

A característica da campanha contra a fome pensada por Betinho era a pressa em resolver um problema que colocava milhões de pessoas nos “limites insuportáveis da fome e do desespero”, como lembrou a carta assinada pelo Movimento pela Ética na Política, também encabeçado por ele:

“Não se pode viver em paz em situação de guerra. Não se pode comer tranquilo em meio à fome generalizada. Não se pode ser feliz num país onde milhões se batem no desespero do desemprego, da falta das condições mais elementares de saúde, educação, habitação e saneamento. Não se pode fechar a porta à consciência, bem tapar os ouvidos ao clamor que se levanta de todos os lados”, dizia a carta.


Deu certo. Uma pesquisa realizada pelo Ibope à época mostrou que a campanha era apoiada por nada menos do que 90% da população. A ideia era bem inovadora para a ocasião: o movimento não tinha comitê central, mas vários comitês que se espalhavam pelo país recolhendo e doando os alimentos. Betinho lançou mão da internet, que na época engatinhava no Brasil, para unir as pessoas.

Os corredores palacianos também se mobilizaram: seguindo a sugestão do então metalúrgico e sindicalista Lula, foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), presidido por Dom Mauro Morelli, um órgão bipartite: metade sociedade civil e metade governo. O presidente era Itamar Franco, que colaborou no combate à fome.

Os empresários também foram chamados a fazer parte da campanha. Num artigo que foi publicado nos principais jornais, Betinho conclamou-os usando a linguagem típica do “business as usual”:

“Experimente emprestar toda a sua experiência para o seu país, fazendo dele seu próximo ‘case’ de sucesso. Ele precisa de sua visão ‘just in time’ para reduzir o desemprego”.

O programa não era assistencialista. Seu objetivo era mexer com o orgulho da nação, desvelando o lado pobre e miserável de um Brasil que queria ser visto, internacionalmente, como um celeiro para investidores. Instigava cada vez mais a se pensar em democracia que, para ele, tinha cinco princípios: “liberdade, participação, diversidade, solidariedade e igualdade”.

Nesses 25 anos, houve uma pausa na distribuição de alimentos. Em 2006, a ONG passou a distribuir livros porque o governo Lula havia criado programas e políticas visando à erradicação da fome, e conseguiu. “Natal sem Fome” passou a se chamar “Natal sem Fome dos Sonhos”.

Até o ano passado, quando o Brasil entrou na iminência de estar de novo no Mapa da Fome mundial. As políticas que haviam dado certo foram, aos poucos, sendo destruídas.


Mas, se a fome recrudescia, o agronegócio crescia. E muito. O Brasil já é o maior exportador de soja. Dados da Conab indicam que, entre as safras 1990/1991 e 2016/2017, a produção brasileira de grãos aumentou 310%, com expressiva elevação média anual de 5,37%, atingindo recorde histórico de 237,7 milhões de toneladas na última safra.

Em 2017, o PIB Brasileiro (IBGE) cresceu 1%, enquanto o PIB-volume do Agronegócio, calculado pelo Cepea/CNA, aumentou 7,2% – impulsionado pela produção recorde “dentro da porteira”, pela importante recuperação agroindustrial e pelo consequente “transbordamento” desses crescimentos sobre o setor de serviços.

Uma prova viva de que o progresso, o desenvolvimento, não estão ligados ao bem viver das pessoas. Dados divulgados no ano passado pela FAO e um grupo de agências da ONU revelam que o combate à fome no Brasil se estagnou. Vamos aos números: em 1999, 20,9 milhões de brasileiros eram considerados desnutridos. Em 2004, com os programas sociais de governo, este volume já havia sido reduzido para 12,6 milhões e, em 2007, era de 7,4 milhões. Em termos porcentuais, entretanto, a FAO aponta que a taxa continua estável e inferior a 2,5% desde 2008. No ano passado, os pesquisadores registraram que cerca de 5 milhões de brasileiros passam o dia sem ingerir quantidade suficiente de calorias necessária para a sobrevivência.

Haverá público, portanto, para a Campanha contra a Fome que começou ontem, com uma tradicional mesa de café da manhã de um quilômetro montada para a população. Este ano, ela tem duas parcerias importantes: a FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura e PMA – Programa Mundial de Alimentos e pretende arrecadar duas mil toneladas em todo o Brasil, até o dia 20 de dezembro, para depois poder fazer chegar aos mais necessitados as mercadorias. Quem agora coordena o movimento é Kiko Afonso, diretor executivo da Ação da Cidadania.


Vale lembrar que, além do Aterro, as doações poderão ser feitas, até o dia 20 de dezembro, na sede da organização, localizada na Rua Barão de Tefé, sob o nº 75, na rede de Supermercados Guanabara e nos diferentes postos de arrecadação espalhados pelo país. E, em dinheiro, por meio do site da campanha. Os alimentos arrecadados serão entregues nos dias 21, 22 e 23 de dezembro, em todos os estados participantes.

Estamos vivendo tempos difíceis aqui no Brasil, de muita polarização, enfrentamentos etc. Mas, certamente, a campanha contará com a solidariedade de muitos.

Um passo à frente e já não se está mais no mesmo lugar. Portanto, apesar de considerar a história um elemento importantíssimo para nosso dia a dia, gosto da ideia de olhar para o que tem sido feito e projetado agora com o objetivo de melhorar a vida dos cidadãos. Neste sentido, uma notícia que chega do Banco Mundial me pareceu ideal para terminar este texto e me deixou feliz. Há uma reflexão por parte dos mandatários do Banco, no sentido de perceber – antes agora do que nunca – que o crescimento econômico vem trazendo “riscos intensificados”.

Para ajudar os países a fazerem investimento mais eficaz nas pessoas, o grupo lançou um novo índice – de Capital Humano. São boas falas. Vou olhar o relatório deste ano do Banco e trarei mais notícias no próximo texto. Por ora, fico com a delicada sensação de que vamos, aqui no Brasil, passar por este turbilhão que estamos atravessando e aceitar o convite do Banco, para lançar um olhar sobre as pessoas, priorizando-as aos lucros. O país de Betinho merece.

Boa semana a todos.